26 de maio de 2009

A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA

Livro II, 1-8

A filosofia argumenta com Boécio, mostrando a ele a causa e a natureza de sua doença e profunda melancolia, isto é, a perda da fortuna. A mulher que personifica a filosofia, mostra a ele que a fortuna tem vários embustes: ela engana, enlouquece, desespera, e por fim, abandona. A profunda melancolia de Boécio é pelo fato de experimentar o novo, a mudança de situação lhe causava perturbação no espírito, lhe causava a perda da tranqüilidade.

A filosofia lembra Boécio que se aquilatada a sua vida em relação à fortuna, nada do que ele se queixava teria sentido, porque de fato, nada do que perdera era realmente bom. A fortuna é instável, seu caráter e procedimento mergulham o homem, que a ela entrega a direção da sua vida, na inconstância.

Deve ser esclarecido, a essa altura do texto, que a Fortuna deusa romana da sorte, corresponde à deusa grega Tyche (lê-se tirre como no espanhol Juan). Tyche era representada portando uma cornucópia e um timão, que  simbolizavam a distribuição de bens e a coordenação da vida dos homens, e geralmente era representada cega ou com a vista tapada, pois distribuía seus desígnios aleatoriamente, ao acaso.

Boécio descobre o jogo de duplicidade imposta pela fortuna, só agora, na prisão. Houve momentos que a fortuna a ele direcionou palavras doces e lisonjeiras, mas agora ela jogava com a própria situação, ela o fez refém daquilo que outrora ele considerou a coisa mais valiosa de sua vida, a fortuna, isto é, o acaso.

Diante da melancolia do nosso personagem, a filosofia o convida para que vá a juízo e tente mostrar que o que ele usufruía é próprio do homem. A filosofia argumenta que Boécio veio ao mundo nu, e tudo que ele “possui” veio com a chegada da fortuna, o acaso. A questão que ela propõe para que ele responda é “como que, com a saída dela (fortuna) o que ele tinha não iria com ela?”

Fica evidente nas palavras da filosofia, que os bens não são próprio do ser humano, ele não nasce com eles. O homem não nasce com títulos, cargos, bens financeiros e honrarias, na verdade, o homem usufrui disto com a presença da fortuna. Assim, de nada deveria Boécio se queixar, tudo o que estava com ele, nunca fora dele, pois se fosse nunca haveria de tê-los perdido.

A filosofia ainda mostra a Boécio os dois lados das coisas naturais, o céu com a beleza do dia, mas a escuridão da noite; o ano com tempos de flores e tempos de inverno; e o mar, com períodos de calmaria e períodos de ondas revoltas. Deste modo, a fortuna também está atrelada a um jogo interminável: “constantemente” vira a roda, fazendo descer o que está no alto, e subir o que está embaixo.

Mas para Boécio as palavras da filosofia, apesar de esclarecedoras e consoláveis, tem um resultado momentâneo, sem causar um alivio definitivo de sua dor. Para ele, no fim de todo discurso, a melancolia e a dor da perda da fortuna retornará.

Para que isso não ocorra, a filosofia se propõe a lembrar Boécio da sua grandeza e magnitude, que outrora era motivo de sua felicidade. Ela passa a recorda-lo de seus cargos, o sucesso de seus filhos na cúria, a esposa honrada e a riqueza que o permitia distribuir aos menos favorecidos, tudo isso foi o apogeu de sua glória. Mas aqui a filosofia, novamente questiona Boécio: “se isso concorre para a definição de felicidade, como é possível esquecer as glórias, mesmo em momentos de sofrimento?”

Até aqui a filosofia tenta mostrar a Boécio o que lhe sucedera, o auge, o apogeu que lhe fora contemplado pelo acaso. A partir daqui a filosofia o chama para um balanço e ela defenderá a situação pelo olhar da “fortuna”.

A filosofia o faz lembrar que até aquele momento a fortuna, o acaso, lhe foi favorável, e pela primeira vez lança sobre ele algo de mal, mas mesmo assim, se comparar a alegria e a dor, o saldo é positivo. A filosofia mostra que o fim de tudo é o encontro certo com a morte, não importando se favorecido ou não pela fortuna. Novamente, a filosofia lança uma indagação a Boécio: “qual é a diferença entre abandonar a fortuna com a morte ou ser abandonada por ela?”

Ela mostra a Boécio que da mesma forma que viemos ao mundo, voltaremos dele, nus, porque a fortuna e o que ela traz não é próprio da natureza do homem.

Todo esse caminho feito pela filosofia, é para mostrar a Boécio que definitivamente, a beatitude não se prende as coisas materiais. O que para ele era de pouco valor, para outros valiam mais que a vida, o que para ele era o exílio, para outros eram a pátria. O comportamento de Boécio é de um fraco, preso as limitações e voltado para a exaltação do desespero e do efêmero.

A filosofia mostra a Boécio que a felicidade terrestre traz a preocupação, nunca pode ser completa. Os homens sempre estarão descontentes com a sua situação, e cada situação é única, tendo aspectos próprios. Para a filosofia, aos mais afortunados, maior sensibilidade, e, mediante a menor adversidade, o abatimento, nas palavras da filosofia “é preciso muito pouco para tirar os afortunados de sua felicidade”.

Entretanto, o infortúnio não é barreira para a beatitude, pois ela pode entrar em todas as partes, não importando a ela se o homem está mergulhado na pobreza ou na riqueza. A beatitude deve ser vista como um estado de espírito. A beatitude consiste em ser senhor de si, ter liberdade, saber guiar-se pela razão e não ter a direção da vida entregue ao acaso (fortuna). A beatitude independe da fortuna, pois a fortuna não tem nenhum conhecimento da natureza da beatitude.

Pela instabilidade da fortuna temos medo de perder o que ela nos trouxe, e isso impede que alcancemos a beatitude, impede-nos de se guiarmos pela razão.

O sucesso material da fortuna termina com a morte, e a morte não acaba com a beatitude, assim, a filosofia sugere ter algo além, muito além do material. Ela mostra a Boécio que para a maioria dos homens seu infortúnio termina com a morte, novamente, a filosofia indaga: “como a vida na terra poderia tornar os homens felizes, se muitos só encontram a felicidade em seu termo (morte)?”

 

“Crer em fortunas efêmeras é crer em alegrias fugazes.

Um decreto eterno foi estabelecido:

nada do que o dia vê é definitivo”

 

 

Bibliografia:

BOÉCIO, A consolação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 156 p.

 

Texto retirado do portal aprenda Brasil